Lucas Mesquita
A reversão da política externa brasileira empreendida pelo atual governo, para além das mudanças programáticas, intensifica uma concepção exclusivista na forma e na produção da política externa brasileira: a redução da participação de atores externos à burocracia oficial. Tal concepção se choca ao desenvolvimento recente, em nível regional e mundial, de uma maior aproximação da sociedade civil nas questões internacionais, e traz consigo dilemas que dificultam a aproximação entre ideias democráticos e produção técnica.
A participação da sociedade civil, principalmente no caso nacional, é fruto de um processo de incremento e de compartilhamento de experiências adquiridas ao longo dos últimos quase trinta anos. De um ponto de vista analítico-histórico o aumento da participação da sociedade esteve amparada em quatro pontos: [a] necessidade de articulação interna com o MRE para a coordenação das propostas apresentadas pelas organizações da sociedade civil nas esferas multilaterais; [b] Experiência na atuação em políticas regionais; [c] Condições políticas e institucionais no nível regional e nacional que permitiram a participação em política externa; [d] a existência de organizações da sociedade civil com agendas voltadas para política externa.
Fruto inicial de articulações em espaços multilaterais, a participação da sociedade civil vivenciou na “onda rosa” latino-americana seu crescimento dentro da ampliação da agenda social no Mercosul. A eleição de um grupo de presidentes nos países do bloco com uma perspectiva partidária de centro-esquerda, permitiu um cenário de confluência de princípios norteadores da integração regional com um viés mais social, e a socialização de uma elite decisória interessada na introdução desses elementos sociais e políticos no escopo da política externa. Esse diálogo e compartilhamento de experiências gerou a criação de instâncias institucionalizadas no Brasil, Argentina e no Uruguai, além do próprio Mercosul.
As ações empreendidas pelo governo brasileiro na realização dos “Encontros com Mercosul”, em 2004, passando pela proposta uruguaia de articular a agenda dos governos com a sociedade civil através do lançamento do “ Programa Somos Mercosur”, serviram como as bases institucionais para a realização das Cúpulas Sociais do Mercosul, desenvolvidas a partir do intercâmbio das experiências da chancelaria argentina, que organizou o I Encontro por um Mercosul Produtivo e Social, cujo resultado foi a proposta da Assessoria Internacional da Secretaria Geral da Presidência da República brasileira de criar Cúpulas Sociais do Mercosul.
Para além da organização das Cúpulas Sociais, a atuação dos pontos focais estabelecidos no “Somos Mercosul” estabeleceu as bases nacionais de diálogos e de participação da sociedade civil em assuntos de integração regional e política externa. Na Argentina foi criado o Consejo Consultivo de la Sociedad Civil, inicialmente responsável pela organização das Cúpulas, mas que incorporou no escopo de debates para temáticas mais gerais da política externa argentina. No caso brasileiro, a organização das Cúpulas sempre ficou à cargo da Presidência da República, que no ano de 2008 criou o Programa Mercosul Social e Participativo, responsável por articular a participação social nas mesmas, mas com o objetivo de ampliar e aprimorar a participação social na discussão de política externa brasileira no campo da integração regional. No Uruguai o ponto focal ficou sobre responsabilidade do Centro de Formación para la Integración Regional (CEFIR), o qual se mantêm como responsável pela organização junto com o MRE das Cúpulas, mas observando as ações brasileiras e argentinas de participação social, foi proposta em 2010 a criação do Sistema de Diálogo y Consultas como canal nacional de participação social em política externa.
Esse cenário fora marcado, mesmo com as dificuldades intrínsecas ao próprio relacionamento entre Estado e sociedade, por uma aproximação importante entre movimentos organizados da sociedade civil com as lideranças políticas do Brasil e também latino-americanas até a crise do impeachment no governo Dilma. A partir desse momento, principalmente na política externa brasileira, a prática que tinha sido consolidada pela aproximação entre políticas sul-americanas começa a ser mitigada. Desde aquele momento não foram mais convocadas reuniões do Programa Mercosul Social e Participativo, o marco da interação entre Presidência, Itamaray e sociedades civil, além da perda de força de outros espaços em construção, como o Foro de Participação Social da Unasul, indicando já uma nova forma de produzir política.
Com o governo Temer e o enfoque comercial da política externa minou de vez essas ações de contato. Foi reestruturada a dinâmica de produção, reconcentrando no MRE todas as decisões políticas. A política externa brasileira se encastelou novamente no Palácio do Itamaraty, e se distanciou da expansão conceitual que vivenciava. Com isso a base social da política é reduzida, e consequentemente o distanciamento aumenta.
Se em outro momento a política externa brasileira pode compartilhar de uma intensa articulação social de atores do chamado “sul-global” da política internacional, agora retornamos as velhas distinções da política externa brasileira entre o Estado e a sociedade.
Lucas Mesquita é professor da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA), doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).